4 de junho de 2007

O SALTO - parte 4


Eu e Isabel, uma amiga espanhola, com o Zuca à espreita.

Tirou as chaves da ignição, fechou as portas e cobriu a carga com uma lona esfarrapada. Tudo o que ainda lá estivesse no regresso, era lucro.
Partimos os três. Deixei os meus melões para trás, não sem antes meter um debaixo do braço. Seria a merenda para a viagem.
O passador caminhava a passo certo. O que para nós eram invadeáveis obstáculos, para ele não passavam dum passeio todo-o-terreno.
A torto e a direito, saltando muros, pisando courelas, íamos afastando o medo de não conseguir passar.
Navasfrias estava à vista. Não déramos por haver passado qualquer fronteira. Parecia uma aldeia fantasma. As casas eram deslavadas e descoloridas.
A jurássica camioneta quedava-se ali. Era preciso aguardar por outra.
Um iluminado qualquer tinha-nos dito que era melhor apresentarmo-nos numa esquadra de polícia e pedirmos um salvo-conduto para podermos circular livremente em Espanha durante trinta dias, pois era comum fazerem isso com estudantes portugueses. Esta era pelo menos, a versão do safado que nos vendeu a ideia. Efectivamente não era assim.
Fizemo-lo e fomos detidos. Os carabineros, estavam estupefactos com a nossa ousadia.
Depois de várias perguntas que nos fizeram, deixaram-nos sós numa sala. O nosso aspecto arranjadinho e sem qualquer bagagem, inspirava-lhes confiança e a certeza que a demora em terras de Espanha não seria longa.
Julgo que fizeram de propósito. Nem nos mandaram embora, nem nos deram salvo-conduto, nem ficou ninguém a guardar-nos.
Ao fim de algum tempo, percorremos com o olhar os espaços mais próximos e não se via vivalma. Apenas ruídos de quem assistia a um jogo de futebol.
Calmamente saímos pela porta principal, sem qualquer entrave e percebemos que os Deuses estavam connosco.
Uma outra camioneta mais arranjadinha, levar-nos-ia a Casillas de Flores e finalmente a Ciudad Rodrigo.
Esta sim, já era uma cidade. Pequena, mas cidade. Não que estivéssemos muito virados para visitar museus ou descobrir locais de interesse, mas dava-nos algum espaço de manobra para cirandar, sem receios maiores.
O medo era uma constante que não conseguíamos dissociar da aventura.
Sentados num longo e corrido banco de madeira, esperando o comboio que nos levaria até à fronteira francesa, íamos devorando um pão espanhol tipo chapada, com montes de presunto. Do melão que trouxera debaixo do braço, já haviamos feito a digestão.
Ainda mal tínhamos saído de Portugal e já tínhamos consumido metade das nossas “massas”. Os melões tinham levado a parte de leão.
Restava-nos agora começar o verdadeiro salto.
Comprámos dois bilhetes para Salamanca, situada 100 Kms mais à frente e depois, se fossemos apanhados, diríamos, que tínhamos adormecido e que iríamos sair na próxima estação. Entrámos no comboio e preparámo-nos para chegar depressa ao final das sete horas que eram precisas para chegar a Irun, na fronteira francesa.
A balbúrdia que ia naquele comboio jogava a nosso favor.
Montanhas de portugueses, de regresso de férias e certamente mais alguns nas nossas condições, faziam-nos parecer filhos de gente abastada que não infringia qualquer regra, pois as nossas indumentárias assim o poderiam fazer supor.
O fato e a gravata ajudavam imenso. Até os portugueses faziam deferência connosco.
Uns jogavam às cartas, outros comiam enchidos bem regados pelo garrafão do tintol.
As crianças choravam, as mães ralhavam. A impaciência estava instalada.
Alguns quilómetros mais à frente, eis que surgem dois revisores para picar os bilhetes. No meio de toda aquela confusão onde mal se podia circular nos corredores, mostrámos-lhes os bilhetes que picaram quase sem olhar. Mais vezes viriam a passar por nós sem nunca nos voltar a ser solicitado o título de transporte.
Entrámos no fundo da noite, encostados, umas vezes a uma qualquer mala de cartão, outras a patorras mal cheirosas.
A chegada a Irun aconteceu era já dia. O amanhecer da esperança estava no fundo dum longo subterrâneo que nos levaria directamente às barbas dos guardas fronteiriços.
Carabineros e gendarmes misturavam-se, de tão próximo que estavam e a verificação de passaportes era una.
Passeport! Passeport! - iam ordenando os jaquetas azuis.
Na nossa idade era quase impossível conseguir tirar o passaporte. A proximidade do serviço militar era a principal razão para a recusa deste.
À falta de tão precioso documento, exibimos o bilhete de identidade.
Passez par lá – e empurraram-nos para um sala onde estava já um amontoado de famílias, com os homens em maioria.
Presos? - perguntei a mim mesmo. Estamos presos, constatei!

2 comentários:

Carla D'elvas disse...

vim espreitar as tuas memórias...
ando fascinada!
obrgd por TE partilhares :)

Anónimo disse...

Entro nas palavras e imagino..
Consigo visualizar e quase oiço... Sons de passos, vozes, ruidos e até silêncios.

Espero o próximo episódio.

I.R.