20 de julho de 2008

Mentira piedosa


Todas as noites nos reuníamos na esquina da rua onde morava a maioria de nós.
Eu era já nessa altura um brincalhão nato, desde que tivesse os ossos inteirinhos, como é óbvio.
Um dia, apareci junto deles com um walkie-talk, objecto então desconhecido por todos. Fi-los então pensar tratar-se dum simples rádio transístor. Era o tempo de “Quando o telefone toca”, programa que Matos Maia apresentava na Rádio Renascença. Ter um transístor para ouvir esse programa, quase tocava as raias dum luxo e eu tinha a sorte de ter ambos.
Tinha combinado previamente com o Camacho, ele esconder-se com um segundo walkie-talk na entrada dum prédio em frente, de modo a que conseguisse visualizar-me e bem assim acompanhar melhor a brincadeira.
A ideia era encostar o transístor ao walkie-talk fazendo parecer que do outro lado, o meu, os sons emitidos fossem efectivamente os dum transístor.
Com a malta toda à minha roda, liguei o walkie-talk e este começa a debitar música, sendo que se tratava da emitida pelo transístor em posse do Camacho.
Disse-lhes então que tinha de ir a casa e afastei-me. Fui ter com o Camacho e disse-lhe que fosse ter com eles, trocando nós de posições.
“Oh malta, encontrei agora o Kim e vejam só este rádio que o gajo me emprestou!”
“Liga lá essa gaita, que está a dar “Quando o telefone toca”!
Camacho liga o rádio e para gáudio de todos, Roberto Carlos encantava.
Duas ou três músicas depois … “atenção senhores ouvintes! Interrompemos o programa para informar que foi assaltada uma ourivesaria na Amadora. A Policia Judiciária está já no encalço do presumível assaltante, conhecido pelo nome de Zé da Viola. Logo que tenhamos novos elementos interromperemos de novo a emissão.
Zé da Viola impulsionado por forças nervosas rodopia duas ou três voltas sobre si mesmo e dispara incertezas. “O quê? O que é disseram? Falaram no meu nome? Assaltei uma ourivesaria? Não acredito!
Em frente, escondido no prédio, eu gozava o panorama. Encostei o walkie-talk à boca e … “mais uma vez informamos que a P.J. procura o assaltante duma ourivesaria na Amadora, conhecido por Zé da Viola. A todo o momento se espera a detenção do perigoso assaltante” .
Zé da Viola solta um chorrilho de impropérios e … “oh malta, eu juro que não fiz nada”. Eu ouvia tudo, porque o Camacho carregava no botão para eu poder ouvir o que diziam. Passaram-se largos minutos de medo e todos os amigos que ali estavam iam tecendo considerações tentando acalmar o revoltado Zé.
Uns minutos depois … “voltamos à noticia do assalto na Amadora, temos indicações que um segundo assaltante, de seu nome Kim, também está implicado no assalto. A P.J, procura agora os dois facínoras. “ E continuava a música.
Eu estava esgotado de tanta emoção. Saí do meu buraco e dirigi-me à malta. Uma vez ali chegado, Zé corre para mim e com ar paternalista diz-me : “Kim! Tens de ser forte para ouvir o que tenho para te dizer.” Com ar de assustado, perguntei o que se passava.
“Olha, somos procurados pela Polícia. A rádio está farta de falar no nosso nome e diz que assaltámos uma ourivesaria. Vamos entregar-nos”!
Durante alguns minutos alimentei-lhe a cumplicidade da inocência, mas depois …
O Zé estava tão nervoso e nem acreditava que tinha sido uma brincadeira minha.
Passava já da meia noite e quando o tema central da conversa era ainda a cena do assalto, num televisor atrás de nós onde passava um programa de fados, ouviu-se o seguinte: “… e agora, à guitarra, Carlos Paredes e à viola …”
“O quê? Viola? Falaram de mim? Está a dar o assalto na televisão?
Zé da Viola demorou a recompor-se!

7 comentários:

Anónimo disse...

OH! KIM!

TINHA QUE SER ARTE TUA.
VOCÊ REALMENTE ERA (OU É) SEM JUÍZO.

VOCÊ TEM TANTA CRIATIVIDADE QUE JUNTO COM O JC, PODIAM ESCREVER UMA NOVELA, UMA COMÉDIA, OU COISA A FIM.

JÁ ESTAVA COM SAUDADES DAS TUAS CRONICAS DO PASSADO.

BEIJOS E SAÚDE.


SPUK

Carla D'elvas disse...

ADOREI :)))))

Osvaldo disse...

Caro amigo Kim;
Como diz o povo... "Esta não lembra ao Diabo".
Quase matavas o teu amigo Viola do coração... mas que dá para rir,... lá isso dá.
E como diria o Roberto Carlos numa das suas canções;
"O que foi felicidade...
Hoje mata de saudade,
Velhos tempos...
Belos dias".
Um abraço

Anónimo disse...

Se a esquina da
Rua Pedro Franco FALASSE
Tinha montanhas de
Histórias para contar.
O.R.

Je Vois La Vie en Vert disse...

Mentira piedosa ? Coitado do Zé da Viola !!!
Fartei-me de rir com esta história !
Continua a nos contar a tua juventude e ainda vais preso....! :-)

Se quiseres ver um exemplo de felicidade malgrado a aversidade, vai visitar o meu cantinho.

Beijinhos verdinhos

SANGUEDAV disse...

Sacana!A partir de hoje,não te viro mais as costas.
E eu que te tinha em boa conta!
Abraço do Pé descalço.

Anónimo disse...

Fiz muita malandrice mas, isso nunca fiz...
Punha sal no tapete das portas...
Telefonava a dizer que tinha falecido parentes.
Atava as portas do mesmo andar, uma á outra que ninguem conseguia sair.
Gatos que apanhava na rua e punha nas varandas do rés do chão..,
Também jogava á carica com os joelhos no chão, e fazia muita batota...
Chorava junto á porta de mercearia, e a D. Atilde dava rebuçados...
Enfim, bons tempos, nos intervalos estudava e portava-me muito bem...
bela