16 de fevereiro de 2007

Intróito


Há momentos na vida, em que nos esquecemos, quem somos e donde viemos.

Este imberbe soldadinho de chumbo que fui, teve numa ensolarada sexta-feira, do verão de 1972, uma pequena lição que se transformou para o resto da sua vida, num cardápio, a consultar todos os dias.
O “cabeça de cavalo” era o mais alto do pelotão. A sua arquitectura facial, estava na base de tão humilhante epíteto.
Todos o assim chamavam, salvo eu. Até ao dia em que …: - deixa-me em paz, “cabeça de cavalo”! Também eu fora apanhado pela onda de alcunhas que se geram nesse tirocínio de vida.
No mesmo dia, eram cerca de 16 horas, todos os recrutas, foram subitamente convocados, pela personalidade máxima do quartel, a apresentarem-se de imediato na parada.

Verifiquei, pouco depois, que a finalidade era uma revista ao aprumo militar de cada soldado. Tarde demais, para mim. Apesar de bem escanhoado e de cabelo razoavelmente curto, faltava-me um acessório absolutamente indispensável – os arreios, (para quem não sabe, trata-se duma espécie de suspensórios).
Tal descuido, custar-me-ia um castigo bem pesado. Para quem tinha 20 anos e o mundo logo ao virar da esquina, era o fim.
Trezentos homens perfilados e em sentido, no escaldante asfalto, aguardavam o sentenciar duma clausura forçada, à mínima infracção.
A meu lado, o “cabeça de cavalo” retira suavemente do seu corpo, os arreios, e obriga-me, vociferando em surdina, a colocá-los nos meus ombros. Suspirei de alívio. Meio atónito, pelo que estava a acontecer, assisto então, à ordem que lhe é dada pelo próprio comandante: - um passo em frente, marche!
O castigo, para ele, veio a seguir. Fim de semana fechado no quartel e um ror de serviços menos limpos.
O “cabeça de cavalo” fora castigado em meu lugar.
Tamanha lição, para quem o tinha humilhado horas antes.
Aprendi desde então, a olhar qualquer estranho, como se dum potencial amigo se tratasse.
A “estoria” é um pouco longa, mas a grandeza do gesto humano, não tem limite de linhas, para ser descrita.
Aquele equídeo rosto, que nunca mais vi, ainda hoje paira, no descontentamento da minha memória.
Nesse dia, fui para casa, cabisbaixo e vergado ao peso da vergonha.


7 comentários:

Anónimo disse...

Moral da história, (segundo um amigo da onça):
O camarada de pelotão do Kim, cumpriu a velha máxima popular e "Passou de Cavalo para Burro".

RS disse...

Mas um "Burro" mui nobre.

Anónimo disse...

um HOMEM á séria :)
com um coração grnd e lindo !
lamento profundamente , o facto de este tipo de HOMEM ,ser uma especie rara e quase extinta :(

carla mar :)

O Bicho disse...

Agora, falando (escrevendo) sério, acho que o Kim, neste blog, mostra como se escreve bem; um belo poder de síntese; o uso equilibrado e adequado das figuras de estilo; a descrição pormenorizada; e por cima disto tudo, um objectivo superior:
"Enaltecer as qualidades humanas".

Anónimo disse...

A tropa é p'ra toda a vida.
Todos os mancebos têm um amigo, uma lembrança, uma experiência,um caso e talvez alguma saudade.
Sou contra a decisão de acabarem com o serviço militar obrigatório.
Um exército, altamente profissionalizado,fechado à sociedade civil,afasta-se do seu povo e fica mais disponível e à mercê das máquinas da guerra global.
Se em 1974, o exército estivesse afastado do povo e sem a influência miliciana, teria havido o 25 de Abril libertador?
XL

RS disse...

Duvido. Em 1974, tal como agora, as chefias militares de topo estão coniventes com o poder político estabelecido, porque são a classe com melhores condições de vida e com carreiras mais auspiciosas. Os Sargentos de Portugal são neste momento o equivalente aos Capitães de Abril. E não reivindicam nada mais do que o cumprimento da Lei, que os políticos aprovaram na Assemblia da República.

Anónimo disse...

Um VERDADEIRO HOMEM chamado "CAVALO"