3 de outubro de 2011

Cemitério - dos prazeres?

Era um funeral como todos os outros.
A avó dum amigo descia ao reino das sombras.
Não havia choros, nem lamentos. Já ninguém chora os velhos, por isso é melhor morrer.
Estava eu a pensar nesta infeliz realidade, olhando o esquife ser coberto de terra, quando uma mão estranha - talvez vinda do outro mundo - me agarrou a mão esquerda e lá deixou um recado num papelinho dobrado em quatro.
Rua Lopes número …. Rés do Chão Esquerdo, (Lisboa) – dizia o recado!
Quase não me mexi. À direita, de braço dado comigo, estava a minha mulher que não deu por nada.
Olhei de soslaio para a personagem mistério e vi uma interessante mulher de olhar compenetrado na tumba que desaparecia. Era como se eu não existisse e ela não me tivesse entregue aquela mensagem. Só nós dois sabíamos aquele segredo.
Eu era um puto – estava na tropa – e tinha vinte e três anos. Ela aparentava um pouco mais de trinta. Estava na conta – era a minha idade preferida. Mas, só a idade! O corpo e o rosto não mexeram muito comigo, já que estavam semi-ocultos mas … curioso como era e ainda sou, achei que deveria passar por aquela morada, para ver o que de lá saía e da curiosidade que prevalecia em detrimento do interesse.
Por obrigação militar, todos os dias tinha de ir à Manutenção Militar, no sítio da Feira da Ladra e aquela morada ficava para os lados do Alto de S.João (nesse dia estava calhado para cemitérios).

Decidi então ir lá e pedi ao condutor para me levar até esta morada.
Era um prédio modesto. De boina na mão, para atenuar o aspecto de militar, toquei à campainha e eis que surge à porta a Gata Borralheira que me entregara o convite no cemitério. Fiquei obnóxio! A Cinderela não tinha ainda vestido o corpo de sair à rua. Feia, boca usada por beijos mal dados, cabelos desfraldados duma noite mal dormida, pele vergastada num corpo vendido, alma só de paixão sonhada. Era ela!
Não, não era a Cinderela da minha fábula. Era a morte a sair à rua.
Não sabendo o que fazer, disfarcei e perguntei-lhe:

- Bom dia minha senhora! O Senhor Coronel está?
- Qual coronel qual carapuça, não há aqui nenhum coronel! – respondeu com voz de noitibó!
- Então desculpe, deve ter sido engano! – respondi a custo e quase envergonhado!
Como que catapultado por algo sobrenatural, dum salto só, entrei no jipe e zarpei.
Também ela não terá reconhecido o príncipe do cemitério, agora transformado em sapo camuflado de soldado.
Nesse dia, coloquei mais um alfinete negro no mapa das ilusões e voltei a crescer!


Às vezes - in "As aventuras de Kim-Kim"

14 comentários:

Osvaldo disse...

Kim;

Como diz o velho ditado:

"Nem tudo que brilha é Ouro".

Grande abraço e boa semana.

Osvaldo

Je Vois La Vie en Vert disse...

As vezes...quando se raspa a capa exterior, encontra-se uns tesouros de...feiura, velhice, maldade, falsidade nas pessoas mas, e o Osvaldo não me vai contradizer, acho eu, nos objectos, podes-se descobrir beleza, antiguidade, valor, verdade.
Bem engraçado é o teu artigo ! A tua vida, principalmente a ingénua... é muito rica !
Beijinhos
Verdinha

Maria disse...

Kim,
Não deixavas escapar nenhuma.
Olha que tu, mesmo vestido com farda, devias ser bonito. Até admira que a Velha Cinderela te deixasse escapar!
Beijinho Alain doutros tempos.
Beijo amigo Kim de hoje
Petite Marie

SEVE disse...

Que inocente noitibó obnoxiado......

Green Knight disse...

Uma mulher leva vinte anos para fazer do seu filho um homem - outra mulher, vinte minutos para fazer dele um tolo.
Helen Rowland

As grandes lições estão nos sucalcos da vida
Um abraço
jrom

Janita disse...

Estou um pouco, sim KIM!
Mas fez-me muito bem sentir a tua presença, meu querido amigo.

Pois olha que eu teria feito o mesmo que tu, curiosa do jeito que sou...
Achei deliciosa a tua descrição da Gata Borralheira, aliás, de toda a estória. Só não entendi essa dos beijos mal dados.
Ah Kim, e também vou ter que ir ao dicionário saber como fica alguém quando entra em estado obnóxio.
As coisas que este homem sabe!

Já viste a foto ( à primeira vista parece-me o Anthony Quin) que o Bruno tem no blog dele?
Diz que é ele daqui a vinte anos, imagina!
Lá sentido de humor não lhe falta. Filho de peixe...

Beijinhos, meu amigão.

Janita

Teté disse...

Curiosidade??? Bom, OK! :)))

Cá por mim não havia papelucho na mão que me fizesse ir a algum lado. Quer dizer, se não fosse o Brad Pit6t a entregar-mo, está claro! :D

Beijocas, Kim!

Fernando Freitas disse...

Cemitério - do melão?

:) :)

Um abraço,

Parisiense disse...

As vezes....o embrulho engana....ahahahah
E assim aprendemos e crescemos...e descobrimois tanta coisa bonita depois....tantas cinderelas e principes...

Bisous mon ange.

Anónimo disse...

Kimamigo

As voltas que um homem dá na vida. Dos prazeres(*) ao Alto de São João - é obra. E, ainda por cima, de jipe. Com tal Cinderela só podias ter dito abóbora!

Kisto de cemitérios & correlativos tem muito que se lhe diga; mas, não só: o MNE, ali ao lado é no palácio das... necessidades (**). Isto éke vai uma crise...

Abç

________
(*) Com caixa alta
(**) Idem, idem, aspas, aspas

Anónimo disse...

Bem feito! :) :) :)


Um Beijinho

Isabel

Fernanda Ferreira - Ná disse...

Hilariante, no mínimo, mas mais há a dizer!
Pelo menos a si saíu-lhe uma bruxa que infelizmente, neste caso, nem sequer era uma bruxa boa ... pior seria se lhe aparecesse o tal que nem a soubera beijar !!!

Muito bem escrito este conto de um "bon vivant".

Beijinho

Anamaria do Val disse...

você poderia escrever " Confesso que vivi" se Pablo Neruda já não tivesse escrito isso, Kim! Adorei sua história! beijinho

Elvira Carvalho disse...

kkkkkkkkkkkkkkk
Não esperava um relato hilariante começado no cemitério.
Enfim uns minutos de boa disposição com este relato.
Se fosse mais velho devia pensar que se a mulher fosse uma beldade não teria necessidade de se oferecer.
Os homens costumam andar à sua volta como abelhas em volta de colmeia.
Um abraço e bom Domingo