Júlio Amaro era um homem feito. Kim, um homem por fazer.
As multifacetadas virtudes do Amaro permitiam-lhe saltar duma pincelada de aguarela ou óleo, para o voo rasante do insólito.
Amaro era mestre na arte da pintura, sábio no que reclamava da vida e mago aspirante a Houdini.
Atendendo a estes predicados, aqui deixo uma pequena “estória”, já evocada há alguns anos, mas que reescrevo, por ser umas das minhas preferidas.
Júlio Amaro (faleceu há seis anos) contava sempre esta "maldade" que o puto KIM lhe teria feito!
(Amaro, no meu escritório, três meses antes de morrer)
Como eu conhecia razoavelmente bem Paris e ele não falava francês, acompanhei-o nessa aventura, de modo a minimizar os efeitos da língua e costumes, nos seus primeiros tempos na cidade luz.
Amaro tinha sido desafiado para trabalhar nas Editions Vaillant, em Paris, para desenhar aquelas “estórias aos quadradinhos” que fazem o deleite da criançada.
Assim, um dia já em Paris, regressámos ao nosso hotel, muito rasca e mais velho que Job, algo cansados e gastos por um malvado dia de chuva e frio.
Enquanto Amaro ficou a esfumaçar no vaivém da largura do quarto, eu espojei-me ao comprido na cama que tinha mais à mão e depressa adormeci.
Amaro, absorto no sonho duma vida melhor, ficou a sorver cigarro após cigarro, rodopiando para trás e para a frente, mergulhado em pensamentos mil, olhando o inerte Kim que parecia dormir o sono dos justos.
Subitamente a luz do tecto apagou-se. Olhou para cima e cofiando a barba de dias, fica especado a tentar entender o sucedido. Afasta-se um pouco e a luz acende-se. Estica a mão para o interruptor e a luz apaga-se. Amaro estava atónito. Não entendia. Ali ficou vários minutos gesticulando passes mágicos que ora iluminavam o quarto ora o escureciam.
Querendo partilhar tal descoberta comigo, digno duma qualquer bruxa de Salém, acorda-me e diz-me:
- Kim, vê bem este meu número de magia que nunca te fiz!
E esticando apenas o braço para a lâmpada, profere a palavra mágica:
- Acende-te! E a luz acendeu-se.
- Apaga-te! E a luz apagou-se.
Repetiu, uma, duas, três, milhentas vezes.
Eu comecei a ficar aterrado com tamanhos truques do Demo e implorei-lhe:
- Amaro, não faças isso! Com essas coisas não se brinca! Estás a meter-me medo!Querendo levar ao limite a descoberta ia dizendo:
- Kim! Sou um mágico do caraças! Ninguém conhece este truque (nem ele).
E voltava a repetir aquele passe de magia, de estica e encolhe o braço.
Amaro sorria e continuava na dança do acende e apaga. E quanto mais medo eu tinha mais ele se deleitava e vangloriava com seus tamanhos poderes.
Assim ficámos algum tempo até que … eu não podia mais.
Comecei a rir, rir, rir e rebolando na cama caí na carpete. Levantei o braço e mostrei-lhe a pêra (interruptor) que segurava na mão. Era eu que apagava e acendia a luz, julgando ele que eu estava a dormir.
Meu Deus, acabara de humilhar o grande mágico.
Sorriu primeiro, vociferou depois. Olhou-me com olhos de quem não existe, acendeu novo cigarro, vestiu o sobretudo coçado, levantou-lhe a gola e saiu murmurando guturais sons inatingíveis.
Lá fora, não chovia nem ventava!
Amaro, onde quer que estejas, estala os dedos e faz a magia de voltar para nós.
Perdoa-me amigo!
16 comentários:
Kim amigo,
Gostei da história, apesar de a conhecer. Fizeste-me rir, coisa cada vez mais rara, fizeste-me chorar, coisa cada vez mais frequente.
Devia ser uma pessoa muito especial, o teu amigo.
Beijo
Maria
Que estória!
rrsss rrrsss
Meu amigo, que esteja em paz esse mágico e que tu tenhas um agradável fim de semana
Amaro só há um, o Mágico e mais nenhum.Foi fantástico. Foi realmente MÁGICO! Sei que anda por aí. Nada se perde tudo se transforma.O melhor truque que lhe conheci foi o "Encontro com Ninguém".
...tá tá rá rá tá - tá tá.
XL
As crianças lembram-se de coisas que deixam os adultos espantados, ou zangados como parece ser o caso. De qualquer modo hoje, onde quer que o seu amigo esteja já lhe terá perdoado a travessura.
Um abraço e bom fim de semana
Brincadeiras que nunca se esquecem :)
xx
Mas foi uma brincadeira inocente e com piada, certamente que há muito já te tinha perdoado! :)))
Beijocas e um mágico fim de semana para ti! :)
Que história ótima, Kim! Você é cheio delas, não é mesmo? Recordar deve dar saudades desse amigo querido. Mas, diz a música " recordar é viver"! Bom fim de semana para você!
Por insólito que pareça, no meu entendimento, esta é a forma ideal de darmos vida a quem já partiu.Recordar os momentos, que com a pureza da traquinisse de um jovem perante o homem "sabido"será sempre um grande passo para o seu regresso ao nosso seio dos vivos.Parabéns Amaro continuas na memória dos amigos.Sei que esta estória é um pequeno nada no curriculum do J.R.Um abraço Quim Bem hajam os que não esquecem!
Não te penalizes porque o teu amigo Amaro há muito deve ter-te perdoado a traquinice, Kim!
Coisas próprias de um rapazola alegre e cheio de energia.
Um dia, quando te encontrares com ele, verás se é ou não como eu digo...
Beijinhos, querido Kim.
Fica bem.
Desconfiei que fosse esse o truque...:)
Ele deve ter perdoado, sim, porque ao ser uma pessoa tão especial, também devia ter sentido de humor.
um beijinho
Gábi
(e fiquei impressionada com a história dos pudins :)
E as "partidas" que eu já sofri...
Caro amigo Kim
Venho penitenciar-me por ontem não ter estado presente na conversa, mas o meu estado de saúde não permitiu.
Hoje já estive a ler os comentários e, como sempre, a plateia esteve animada e houve bastante participação.
Muito obrigado por mais este contributo para a Rua dos Cafés que está a chegar ao fim, depois de três meses de domingos muito animados.
Espero que releve a minha falta.
Um grande baraço
Júlio Amaro,
Grande Amigo
Saudades.
o.r.
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